Entrevista essencial: climatologista Carlos Nobre emite alerta sobre era de extremos climáticos
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As enchentes no Rio Grande do Sul deixaram, até o momento, 149 mortes e afetaram milhões de pessoas em todo o estado. O volume de chuva dos últimos dias, previsto com antecedência por institutos meteorológicos, chegou a 800 milímetros. Rios e lagos transbordaram e invadiram centenas de cidades.
Segundo o climatologista Carlos Nobre, fenômenos como esse serão cada vez mais frequentes. E não são apenas períodos chuvosos, mas também secas rigorosas e ondas de calor contínuas. “Isso tudo que está acontecendo, o recorde de ondas de calor no mundo inteiro e também no Brasil nos últimos anos, são fenômenos extremos, que não só estão acontecendo com mais frequência, mas também os recordes estão sendo batidos praticamente em todo o mundo”, explica.
O cientista, que é um dos mais renomados na área de estudos do clima e do aquecimento global, afirma que essa era de extremos “não tem mais volta”. Mesmo assim, Nobre aponta que é urgente um grande esforço global para a redução imediata das emissões de gases do efeito estufa.
“Reduzir rapidamente, a jato, as emissões de gases do efeito estufa é absolutamente mandatório. Isso não é uma opção, não é uma escolha. Se nós não conseguirmos rapidamente reduzir as emissões de gases do efeito estufa, nós podemos chegar até 2,5°C [de aumento da temperatura global] em 2050”, diz. “Isso vai tornar muito mais frequentes esses eventos extremos, as ondas de calor, as chuvas, as secas, um enorme impacto em todos os sistemas naturais, enorme impacto na biodiversidade e na nossa própria sobrevivência.”
Nobre foi o convidado desta semana no BdF Entrevista. O climatologista explica que o próximo passo é preparar as cidades para eventos extremos. O Rio Grande do Sul, por exemplo, que foi construído às margens de rios e lagos, terá que retirar milhões de pessoas de áreas que, agora, são consideradas de risco e altíssimo risco.
“Se supunha que nunca os rios iriam subir muito, o que nós já vimos em setembro do ano passado na bacia do Rio Taquari, que subiu mais de 10 metros. E agora, de novo, em alguns lugares, até 20 metros. Então, não há mais como imaginar manter todas essas populações nessas áreas de altíssimo risco”.
“Aí vem um gigantesco desafio: no Rio Grande do Sul, são centenas e centenas de milhares de pessoas que moram muito próximas do nível dos rios e não há soluções de infraestrutura. Talvez, em Porto Alegre, pensar uma infraestrutura, subir o muro, não deixar mais os portões… porque agora que chegou a 5,33 metros, não há nenhuma possibilidade de que nas próximas décadas não passe de 6 metros. E na maioria dos rios não há como criar essas infraestruturas”, completa Nobre.
O Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais) deve lançar um estudo nos próximos meses, que monitorou mais de 1,9 mil municípios em todo o país, onde há registros de pessoas vivendo em áreas de risco. Segundo Nobre, no estudo “esse número certamente vai passar de 12, 15 milhões de brasileiros em áreas de risco e talvez 4 milhões em áreas de altíssimo risco, como esses na beira de todos esses rios que foram super inundados. E ali não podem mais permanecer. As pessoas têm que ser transportadas, mudadas, para lugar seguro”.
Na entrevista, Nobre ainda fala sobre o papel do Brasil na redução das emissões de gases do efeito estufa, a COP 30, que será realizada no Pará, em 2025, entre outros temas.
Assista na íntegra e leia abaixo alguns destaques:
Brasil de Fato: Queria começar nossa conversa falando sobre as enchentes no Rio Grande do Sul, que são de proporções catastróficas. Nós estamos gravando essa entrevista na quinta-feira, 9 de maio, e até esse momento são 107 mortos e 136 pessoas desaparecidas. Em setembro do ano passado, a cidade já havia passado por um evento também importante, com vítimas e tudo mais. A sensação é de que a distância entre os eventos dessa magnitude têm se aproximado cada vez mais. É isso mesmo?
Carlos Nobre: Sem dúvida, os eventos climáticos extremos como chuva recessivas, severas, rajadas de vento muito perigosas, secas, ondas de calor, incêndios na vegetação, quebra de safras, tudo isso tem acontecido com mais frequência e também batendo recordes. Por exemplo, na bacia do Rio Taquari, em setembro do ano passado, foi o recorde de inundações da história daquela bacia.
E agora, semana passada, e continua essa semana, o recorde de inundações e também muitos deslizamentos no estado todo do Rio Grande do Sul, mais de 60% do estado foi afetado. Isso a gente tem visto no mundo inteiro. Em 2023 e 2024 bateram o recorde de seca na Amazônia e agora nesse verão, no Cerrado. Em 2020 foi o recorde de seca no Pantanal.
Isso tudo que está acontecendo, o recorde de ondas de calor no mundo inteiro e também no Brasil nos últimos anos, são fenômenos extremos, que não só estão acontecendo com mais frequência, mas também os recordes estão sendo batidos praticamente em todo o mundo.
No caso do Rio Grande do Sul, além de todos os desastres, uma série de regras ambientais foram afrouxadas pelo estado. Qual é o impacto dessas mudanças, mesmo que elas sejam locais?
Os impactos de não ter muito mais rigor com relação às mudanças climáticas, no sentido de buscar aumentar a resiliência de todas as populações, proteger a biodiversidade e também tornar a agricultura muito mais sustentável, esse é um desafio de todo mundo, muito do Brasil e muito do Rio Grande do Sul, um estado que é super produtor agrícola.
Várias políticas que estão acontecendo no Brasil estão na direção oposta. Você tem políticas que permitem o aumento do desmatamento, o aumento da degradação, permitem retirar vegetação na beira de rios. Tudo isso está acontecendo, infelizmente, em muitos estados do Brasil. Até mesmo no Congresso, com a legislação federal.
Nós precisamos tomar muito cuidado e agora, com esses eventos extremos explodindo, nós realmente precisamos mudar a posição dos políticos brasileiros, todos os deputados federais, estaduais, vereadores, senadores, governadores, prefeitos, presidente, todos, para tornar o país muito mais preparado, muito mais resiliente. Esses extremos não têm mais volta.
O ano passado foi o ano mais quente do registro histórico em 125 mil anos, desde o último período interglacial e esse ano continua tão quente, ou até um pouquinho mais que o ano passado. Os oceanos bateram todos os recordes de temperatura da história, pelo menos até o último período interglacial, nos últimos 125 mil anos. Então não há como imaginar que esses eventos vão deixar de acontecer, ou que vão acontecer com menos frequência. Ao contrário, eles vão acontecer com mais frequência.
O senhor falou “não tem mais volta” e com isso, o senhor quer dizer que os esforços que a gente vai fazer daqui em diante para tentar mitigar a emissão de gases do efeito estufa, o aquecimento do planeta, eles são só uma rebarba, e a gente vai ter mesmo um clima cada vez mais descompensado daqui em diante?
Muito cuidado para não pôr uma tremenda ênfase em reduzir o risco presente e futuro. Portanto, reduzir rapidamente, a jato, as emissões de gases do efeito estufa é absolutamente mandatório. Isso não é uma opção, não é uma escolha. Se nós não conseguirmos rapidamente reduzir as emissões de gases do efeito estufa, nós podemos chegar até 2,5°C [de aumento da temperatura global] em 2050.
Isso vai tornar muito mais frequentes esses eventos extremos, as ondas de calor, as chuvas, as secas, um enorme impacto em todos os sistemas naturais, enorme impacto na biodiversidade e na nossa própria sobrevivência. Não há nenhuma dúvida de que nós não podemos desistir de enfrentar esse que é o maior desafio da humanidade, de não deixar as emissões aumentarem.
Com as emissões atuais, a gente pode chegar permanentemente a 1,5°C de aumento da temperatura global antes de 2030. Imagina que o Acordo de Paris, que foi muito bem feito, reforçado na COP 26, de 2021, em Glasgow, mostrando: “olha, não podemos deixar o planeta chegar a 2°C, é muito perigoso. Não vamos deixar passar de 1,5°C”, a verdade é que nós já estamos chegando em um 1,5ºC.”
Então, nós temos esse enorme desafio e só quero deixar claro que além de preparar as populações todas do mundo, nós brasileiros, a sermos muito mais adaptados, resilientes a esses evento que já estão acontecendo e vão continuar acontecendo, nós não podemos abrir mão de reduzir as emissões.
Para não passar de 1,5°C, a gente teria que reduzir muito rapidamente as emissões. Quase 50% até 2030, e depois zerar as emissões líquidas antes de 2050, não é uma tarefa fácil. Se a gente pegar o que cada país se comprometeu lá na COP 27, no Egito, em 2022, a gente chegaria em 2050 com 2,4ºC a 2,6°C.
Agora, na COP 30 em Belém, aqui no Brasil, o Brasil tem uma enorme responsabilidade de mostrar os riscos – porque da COP 27, em 2022, para a COP 30, aqui no Brasil, em 2025, os eventos extremos explodiram no mundo todo. Então, vamos torcer para o Brasil liderar uma grande transformação, para nós reduzirmos rapidamente as emissões em 50% nos próximos anos, e depois zerar as emissões antes de 2050.
Estava lendo um texto falando sobre as questões geográficas do Rio Grande do Sul e a proximidade das edificações dos rios e do mar. O senhor acha que houve um cálculo errado no momento de pensar a expansão urbana do estado? Quais são os riscos futuros dessa região?
Olha, essa é uma prática, uma evolução da urbanização em todo o país, em todo o mundo, na verdade, que não levava em consideração o risco das mudanças climáticas devido ao aquecimento global.
Então, por exemplo, quando houve aquela inundação, em 1941, do Rio Guaíba, a chuva em boa parte do Rio Grande do Sul que subiu para o Rio Guaíba, fez com que o rio subisse muito, uma grande inundação no que era aquela cidade de Porto Alegre, 80 anos atrás. E aí, depois, na década de 1960, 1970, se constrói aquele muro de 6 metros, supostamente para proteger, nunca teria nenhuma inundação acima de 6 metros.
De fato, essa inundação chegou muito próximo, 5,33 metros, mas ao longo dessas décadas foram construídos aqueles portões porque, se não, você fica com um muro de concreto por quilômetros e quilômetros e quem quiser usar o rio para transportar material tem que andar quilômetros. Então, eles construíram um monte de portões para facilitar o trânsito econômico e comercial ali.
E o que aconteceu dessa vez? Grande parte da inundação ali na beira do Rio Guaíba foi de uma água que conseguiu passar por baixo desses portões. E também, inúmeros municípios do Rio Grande do Sul nasceram e foram construídos do lado de rios muito baixos, na planície de inundação dos rios.
Se supunha que nunca os rios iriam subir muito, o que nós já vimos em setembro do ano passado, a bacia do Rio Taquari subiu mais de 10 metros, e agora, de novo, em alguns lugares, até 20 metros. Então, não há mais como imaginar manter todas essas populações nessas áreas de altíssimo risco.
Aí vem um gigantesco desafio: no Rio Grande do Sul, são centenas e centenas de milhares de pessoas que moram muito próximas do nível dos rios e não há soluções de infraestrutura. Talvez, em Porto Alegre, pensar uma infraestrutura, subir o muro, não deixar mais os portões… porque agora que chegou a 5,33 metros, não há nenhuma possibilidade de que nas próximas décadas não passe de 6 metros. E na maioria dos rios não há como criar essas infraestruturas.
O estudo do Cemaden, que vai ser lançado nos próximos meses, para mais de 1,9 mil municípios com imensas áreas de risco, vai gerar pelo menos uns 4 milhões de brasileiros que não podem continuar em área com risco de inundações, enxurradas e deslizamentos. O estudo foi feito em 2019 e considerou poucos municípios no Rio Grande do Sul, e chegou à conclusão que ali teriam 700 mil gaúchos em áreas de risco, um número bem menor em área de altíssimo risco.
Veja bem, o que aconteceu agora,1,4 milhões de gaúchos em área de altíssimo risco. Agora o novo estudo do Cemaden vai considerar todos esses municípios e esse número certamente vai passar de 12, 15 milhões de brasileiros em áreas de risco e talvez 4 milhões em áreas de altíssimo risco, como esses na beira de todos esses rios que foram super inundados. E ali não podem mais permanecer. As pessoas têm que ser transportadas, mudadas, para lugar seguro.
E também milhões de brasileiros vivem em áreas de risco de deslizamento em encostas muito íngremes na serra do Rio Grande do Sul, na Serra do Mar, na Serra da Mantiqueira, em grande parte do Brasil. Portanto, o sistema de alerta tem que ser melhorado imensamente para ter sirenes, para ter locais para as pessoas quando elas têm que sair das suas casas, para não ter um deslizamento da encosta, para não ter uma inundação perto de rios.
Que essas pessoas possam ir para um local que tem alimento, que tem água, que tem medicamentos. Nós temos pouquíssimas cidades no Brasil que tem o sistema de sirenes como a região serrana e a cidade do Rio de Janeiro, em Salvador…são pouquíssimas. Por exemplo, em março teve um dia com mais de 300 milímetros de chuva na região serrana e só quatro pessoas morreram, de uma família que não saiu da sua casa apesar das sirenes tocarem, salvou centenas de pessoas.
Isso tem que ser generalizado para todo o Brasil. Então, além de talvez retirar milhões de pessoas dessas áreas de risco e altíssimo risco, outras milhões de pessoas têm que ter sistemas de alerta muito avançados. A gente costuma sempre fazer uma comparação com o Japão, um dos países que mais sofrem terremotos do mundo. Os terremotos não são previsíveis, diferente das enchentes.
No Rio Grande do Sul, foram previstos com dias de antecedência. O Cemaden, lá em setembro, anunciou muitos riscos. Até a defesa civil dessa vez tomou uma ação mais enérgica para ir retirando as pessoas.
No Japão tem muitos terremotos, e muito sérios. O terremoto não tem previsão, eles só sabem na hora que ele começa. Toda a população japonesa foi super preparada, com sirenes em todos os lugares, educação dos jovens desde o ensino fundamental, todas as pessoas sabem exatamente quando tem um terremoto, para onde ir, para onde correr, para onde ficar, para não morrer.
Foi o que ajudou agora em Taiwan, por exemplo, que foi um terremoto de proporções gigantes, mas já há cultura no país de se precaver, mesmo os comunicados do governo se não chegam por sirene, são por SMS, no celular, enfim. Vamos ter fazer uma transformação cultural no Brasil, não é?
Sim, o terremoto não é previsível, as pessoas se salvam a partir do momento que começa o terremoto, com anúncios. No Japão é tudo sirene, além de tudo o que está também eletronicamente, com inteligência artificial, SMS, tudo. Nós precisamos ter esse tipo de sistema em milhares e milhares de cidades brasileiras, em áreas de risco, dentro das cidades.
Publicado no Brasil de Fato.