Coluna Bordando Ideias, de Rose Telles* do Comitê Popular Linhas do Mar, traz uma reflexão sobre o PL 1904/24. Confira:
O bordado que ilustra o texto é uma reprodução têxtil de obra do artista Fernando Carvall. Representa a condenação de uma criança que conseguiu, a duras penas, acessar o aborto legal. Quem não se lembra do calvário de uma delas, que saiu do ES – onde os hospitais lhe fecharam as portas – e foi até o Recife, perseguida pelos seguidores de Damares Alves, responsável pelo vazamento de seus dados? A criança entrou no hospital dentro do porta-malas do carro, enquanto uma horda alucinada tentava impedir que ela se libertasse da gravidez enfiada com violência dentro de seu corpo de menina.
Derrotamos o projeto das trevas do inelegível, mas não no Retrocesso Nacional que dá as cartas e apresenta esta maldita PEC 1904/24, que pretende tirar das mulheres a garantia de aborto legal, sem limitação de idade gestacional, e também criminalizá-las em caso de sofrerem o procedimento depois da 22ª semana. A pena? Homicídio simples: 20 anos! E pras crianças? Estas ficarão privadas de sua liberdade, sob regime de internação em locais “especializados” para recebê-las. No caso de a mulher ou a criança sofrerem graves consequências, a pena poderá ser diminuída, e se morrerem estarão livres das penas propostas pelo deputado Sóstenes Cavalcante, líder evangélico do Rio de Janeiro.
A infâmia foi rebatizada como “PEC do Estupro” e recebeu como resposta a indignação das mulheres que estão tomando as ruas, em luta. “Nem presas, nem mortas!”, é um dos bordões que gritam ; “Criança não é mãe” é outro deles. Em 2023, o Brasil registrou 74.930 estupros, o maior já registrado na história; sem a subnotificação, avalia-se que o número gire em torno de 800 mil! Para piorar o cenário, 61,4% das vítimas tinham no máximo 13 anos de idade. Destas, 154 recorreram ao aborto legal; muitas, no entanto, levaram a gravidez a termo.
Os estupros, em sua maioria esmagadora, aconteceram na casa da vítima, de forma continuada. São pais, padrastos, tios, primos, pessoas próximas, que coagem as crianças sob ameaças terríveis. A gravidez é descoberta de forma tardia, e o serviço de aborto legal dos hospitais de referência não está cumprindo a lei, acuado pela Confederação Nacional de Medicina. Sofrem sempre os mais vulneráveis; a classe média tem clínicas especializadas para fazer o aborto com discrição. Os motivos para a urgência na votação são torpes: emparedar o presidente Lula e as esquerdas, lançando-lhes a pecha de “abortistas”, e também acobertar estupradores, principalmente os que se camuflam nos discursos de proteção à familia. Erraram a mão.
A crueldade levantou até mulheres religiosas contra a abominação. Histórias de meninas foram expostas. A perversa PEC jogou luz sobre nossos corpos violentados e usados para fins de controle e poder. Nunca foi sobre amor à vida. Por isso estamos em luta para que a PEC do Estupro seja lançada ao lixo da história.
*Rose Teles é professora aposentada, membra do Coletivo Caiçara e bordadeira do Linhas do Mar/Caraguatatuba